Nas ruas da capital paulista, um burburinho crescente de passos apressados e buzinas insatisfeitas emanava de trechos de asfalto que eram, pouco a pouco, energizados pelos raios solares que emergiam do horizonte, compondo uma melodia adorada por aqueles que lá viviam. Era uma pena que, pela segunda vez naquela mesma semana, eu não estivesse em condições de apreciar aquele cenário caótico.
Há minutos forçava meu corpo a caminhar para além da fachada do prédio em que habitava, preocupado por estar novamente atrasado para minhas obrigações acadêmicas diárias. Mesmo assim, era incapaz de vencer a resistência do meu próprio estômago, que insistia em sentir-se nauseado diante as informações que vinha recebendo. Seja lá qual força do Acaso estivesse responsável por escolher meus poderes de hoje, faltara consideração quanto ao meu conforto.
Naquela manhã, eu havia despertado no fundo do mar, a quilômetros do que parecia ser a superfície. Por onde quer que olhasse havia peixes multicoloridos, serpenteando por entre algas bru-xuleantes em busca de alimentos que, do meu ponto de vista, pareciam suspensos em pleno ar. Além disso, existia na superfície de qualquer objeto o impressionante, mesmo que incômodo, efeito da refratariedade da luz solar ao penetrar por litros de água salgada. Tratava-se de uma cena maravilhosa, porém que forçava meus pulmões a hesitarem toda vez que tentavam respirar; e que revirava meu estômago sempre que o contraste entre a densidade do meio que eu via e aquele no qual estava inserido tentava ser processado pela minha mente simplória.
— Devo dizer que você está vestindo uma expressão mais incomodada do que de costume, meu caro. Não posso imaginar o que de tão absurdo deva estar enxergando.
Felizmente não precisei fazer qualquer movimento para procurar o dono daquelas palavras recheadas de sarcasmo. Após tantas semanas sendo obrigado a tolerá-lo diariamente, era óbvio que em algum momento ele apareceria para assumir sua autoproclamada função. Pela primeira vez, seria muito bem-vindo.
— Eu esperei por você por muito tempo – resmunguei sem vontade, fazendo questão de transmitir minha infantil insatisfação. – Você costuma ser mais eficiente.
— Uma reclamação deveras deselegante, meu caro. Insisto que no futuro não julgue a minha eficiência pelo tempo que demoro a vir ao seu encalço. Afinal, até mesmo eu conheço as vantagens de não estar sempre disponível.
O sujeito abrira, então, um largo sorriso, que eu respondi com uma careta sem vontade, demonstrando estar ofendido. Apesar do gesto ríspido, eu estava familiarizado com a sensatez de suas palavras, especialmente por reconhecer a dimensão dos conhecimentos que este possuía sobre assuntos paranormais: apenas ele poderia me guiar pela involuntária missão de desbravar o multiverso terráqueo.
— Sinto muito pelas minhas palavras. Estou extremamente incomodado por tudo aquilo que venho enxergando nesta manhã – recomecei em um tom arrependido, forçando-me a encará-lo diretamente. – A cidade inteira está debaixo d’água, forçando-me a sentir uma náusea que é incompatível com qualquer pragmatismo. Mesmo utilizando os filtros que conheço, não existe forma de apagar essa infinitude de água.
— Isso explica seu comportamento arisco: a primeira experiência diante de um mundo aquático costuma ser devastadora – comentou o rapaz, sem economizar no sarcasmo; em seguida, perdeu alguns instante procurando por algo dentro da mochila que carregava, não demorando a oferecer-me um comprimido rosa que aceitei sem questionar. – Apenas por curiosidade, como está sendo ter de respirar debaixo d’água? Ainda está apresentando dificuldades em realizar uma função tão simples?
Não respondi de imediato, imaginando que não seria capaz de manter o respeito entre nós dois. Além disso, conforme o enjoo era derrotado pela medicação que havia ingerido, sentia o ânimo retornando ao meu corpo: já não via mais motivos para escolher a violência em um dia tão sereno.
— Para sua infelicidade, devo dizer que as informações que você me passou não foram as melhores para eu localizar a dimensão que está observando. Afinal, existem infinitos universos em que São Paulo está abaixo do nível do mar. Muitos deles por uma questão simplesmente evolu-tiva, sem qualquer ponto de interesse pelos quais possamos nos aprofundar. Um completo des-perdício do nosso precioso tempo.
Não fiquei completamente surpreso com aquela resposta. Depois de semanas sendo ensinado sobre as particularidades do multiverso, era compreensível que cada grande mudança gerasse um número infinito de dimensões com características semelhantes, que por si só levariam a criação de infinitos outros mundos, acarretando assim na ramificação saudável da árvore dimen-sional. Pelo visto aquela seria mais uma tarde em que eu abandonaria minhas responsabilidades socioeconômicas para manter-me seguro em meu domicílio, apenas aguardando aquele tormen-to terminar.
Consciente quanto às escolhas que me restavam, estava pronto para despedir-me do meu guia sem nome, e limitar-me ao apartamento que dividia com minha própria solidão, quando assisti uma criatura cheia de escamas atravessar o meu corpo como um projétil, pousando sobre uma rocha a poucos metros de onde estava. Inconscientemente levei os olhos na direção daquele ser desconhecido, encarando-o com o queixo caído.
Tratava-se de um espécime humanoide, revestido por escamas prateadas que refletiam as luzes solares como se fossem feitas do mais nobre dos metais; um conjunto de longas barbatanas azuladas bruxuleavam sobre suas garras afiadas, enquanto sua cauda, sólida e poderosa, assumia a função de prendê-lo à formação rochosa na qual estava; por fim, seus terríveis olhos reptilianos, ictéricos e profundos, lembravam aqueles de um demônio tomado por uma loucura quase humana.
A criatura balançava a cabeça com movimentos rápidos e aleatórios, como se procurasse por algo de grande importância. Um par de guelras flutuava conforme sua respiração, refletindo a inquietação que dominava aquele estranho espécime marinho. Quando ele enfim concluiu a impossibilidade de encontrar aquilo que procurava naquela região, simplesmente saltou do rochedo em que estava empoleirado, partindo com velocidade para um ponto a poucos quarteirões de onde estávamos.
Encantado por aquele inesperado encontro, permaneci atônito por breves instantes, incapaz de afastar meu olhos do local em que a criatura agora estava. Foram necessários mais do que alguns estalos de dedo para me desvencilhar do meu transe.
— Dimensão principal chamando por seu capitão. Favor informar aos demais tripulantes sobre o que diabos chamou tanto a sua atenção.
Embasbacado, demorei para perceber que meu companheiro de atividades paranormais estava me encarando com uma expressão de genuíno interesse no rosto, exigindo informações que eu não saberia como descrever com exatidão. Após muito refletir, optei por ser o mais pragmático possível:
— Eu encontrei um sereiano.
Pela segunda vez desde que o conhecera, meu guia pareceu genuinamente surpreso. O sorriso de praxe sumira do seu rosto por instantes, não demorando a transformar-se em uma expressão de interesse que ele não fazia questão de esconder.
— Isso reduz incrivelmente a nossa lista de universos. Acredite quando digo que existem pou-quíssimas dimensões nas quais se pode encontrar essas criaturas sob a luz do Sol. Mas isso apenas se você souber a diferença entre um sereiano e outra figura tão difundida no nosso imaginário contemporâneo comum, conhecida como sereia.
— Admito não saber ao certo – respondi com sinceridade, enquanto voltava a encarar o ponto em que a criatura ainda estava imóvel, vasculhando por algo além do alcance da sua visão. – A despeito do corpo humanoide, todo o restante do seu corpo é de um peixe. Ele me lembra muito mais um monstro das profundezas do que uma princesa de livros infantis.
— Uma caracterização deveras simplória, porém fiel à sua função – comentou meu companheiro, com um sorriso debochado nos lábios; ele não demorou a levar as mãos sobre os ouvidos, selecionando os filtros que o levariam a isolar o universo que eu involuntariamente assistia. – Precisarei de mais alguns dados para sincronizarmos, sendo o mais importante deles a cor das escamas de tal criatura.
— Elas são prateadas por toda a extensão do seu corpo, menos nas barbatanas, nas quais esbanjam um azul turquesa hipnotizante.
Ao som daquelas palavras, notei suas mãos hesitarem, como se fossem incapazes de compreen-der as informações que digeria. Assim que conformado com a descrição que recebera, ele abriu o maior sorriso que eu já havia presenciado no rosto de outro ser humano. A única expressão verdadeira que já havia visto em sua feição.
— Você não possuí a mínima ideia do carinho que o Acaso tem ao selecionar as dimensões que você diariamente aprecia – confessou em um tom animado, enquanto as mãos voltavam a trabalhar. – Por acaso você consegue ver aquela alga dourada? Ótimo, nós estamos finalmente sincronizados. Antes que seja tarde demais, diga-me para onde devemos correr caso desejemos encontrar aquela criatura escorregadia.
Assim que apontei a direção na qual havia assistido o sereiano escapar, meu companheiro correu como se não existissem riscos em caminhar de forma desatenta por São Paulo, esperando que eu fosse instintivamente acompanhá-lo. Consciente sobre todos os riscos que envolviam transitar em uma região metropolitana com filtros tão exuberantes, demorei para juntar coragem para segui-lo: no final, nós sempre obedecíamos aos seus desejos inconsequentes.
Mantivemos um ritmo frenético de perseguição por aproximadamente quarenta minutos. Após quase sermos atropelados três vezes, e por outras duas eu ter sido obrigado a puxar meu guia pela camiseta para evitar que ele pulasse sobre vias arteriais em meio ao caótico tráfego paulis-tano, nós finalmente encontramos sinais palpáveis de que estávamos seguindo as criaturas para local correto, encurralando-as em um terreno abandonado em algum ponto de Moema. Em vão, tentei delimitar onde exatamente estávamos, mas havia transitado para além da minha região para reconhecer aquele terreno.
— Posso sentir a energia dessas criaturas se amontoando. Não tenho dúvidas de que o evento vai acontecer aqui dentro.
Ditas aquelas palavras, ele começou a escalar o muro que circundava aquele trecho abandonado do perímetro urbano, sem ponderar as implicações legais envolvidas naquele ato. Tomado pelo temor de que seria consumido pela moralidade da sociedade atual, puxei-o para baixo com urgência. Felizmente ninguém parecia ter visto aquela meia transgressão.
— Será que você finalmente perdeu a cabeça? Nós não podemos invadir uma propriedade alheia de forma tão leviana. Ainda mais para assistirmos algo que ninguém mais pode ver!
— Do que você está falando? – perguntou o rapaz, utilizando-se de um tom genuinamente incrédulo. – Olhe o tamanho deste lugar. Qual a chance de alguém perceber que entramos por alguns minutos neste terreno abandonado?
— Por acaso você perdeu a cabeça? Não podemos invadir propriedade alheia desta forma! Sobretudo para caçar algo que os outros não conseguem ver: imagine ter de convencer a polícia de que não estávamos planejando nada de ilegal?
— Você está perdendo o ponto principal desse dilema, meu amigo. Independentemente dos riscos que possamos correr, aquilo que estamos prestes a vivenciar é de uma magnitude que valerá por todos os riscos conhecidos.
— Como eu posso compactuar com essa arriscada opinião se nem ao menos sei pelo que estamos exatamente nos arriscando?
Com uma elegância incondizente com sua personalidade intrometida, meu guia conjurou em pleno ar sua enorme enciclopédia incompleta. Utilizando-se dos seus dedos ágeis, ele folheou boa parte da edição antes de encontrar, com uma rapidez inquietante, o verbete que procurava. Pigarreou algumas vezes antes de recitá-lo a plenos pulmões.
— “Sereianos. Classe de peixes humanoides que habita centenas de universos conhecidos, em especial aqueles dominados pela água dos oceanos. Trata-se de criaturas de baixo intelecto, que sobrevivem principalmente da predação de herbívoros inferiores. A principal distinção entre as diferentes espécies de sereianos é a coloração de suas escamas.” Agora, ignorando aquilo que não vai ser relevante a situação atual – comentou, enquanto mapeava a seção aberta com um dos dedos indicadores –, sim, escamas prateadas. “São criaturas encontradas em apenas uma das dimensões dentro do espectro visível. Infelizmente, devido à sua natureza arisca e seu habitat subterrâneo, poucas são as informações armazenas a seu respeito. O que sabemos pode ser re-sumido em três informações: (1) são carnívoros; (2) são incrivelmente velozes quando compa-rados a espécimes semelhantes; (3) costumam sair de suas colônias poucas vezes por ano. Exis-tem relatos de um ritual especial presenciado por poucos paranormais, estritamente relacionado ao período de migração dos sealords, coabitantes da dimensão que estes fazem parte e suas mais famosas presas. Esse evento, conhecido na literatura como a grande orquestra, contém um ritual aquático único, marcado por sua brutalidade e musicalidade ímpares. Ainda não existem explicações quanto à motivação desses eventos. Até o momento não há dados os suficientes para que possam ser rastreado e/ou previstos”.
Com a mesma facilidade com a qual havia surgido, a enciclopédia simplesmente desapareceu. Meu companheiro voltou a escorar-se no muro que cercava o terreno, encarando-me com um anseio inquietante enquanto aguardava por qualquer reação minha. Não demorei a perceber o motivo por detrás daquela animação: esta seria sua primeira vez presenciando tal espetáculo.
Infelizmente, a despeito de toda a singularidade e maravilhas que poderiam estar me aguardando no interior daquele terreno, não poderia abandonar meus temores reais em detrimento de uma experiência paranormal, por mais exclusiva que ela pudesse ser.
— Nós não podemos perder mais tempo aqui se desejamos assistir a esse famigerado ritual. Por que você não me ajuda a subir rapidamente para que possamos nos deleitar com algo único? Senão por mim, pelas implicações que isso poderá gerar na história da nossa classe.
— Para começo de conversa, eu não faço parte de qualquer classe compartilhada contigo; fui arrastado a participar destas aventuras bizarras que envolvem o multiverso por motivos que vão além da minha compreensão, e que só têm atrapalhado a minha vivência como um jovem funcional. Em segundo lugar, acho que extrapola os limites da nossa curiosidade cometer um crime apenas para assistir um evento que, por Deus, nem mesmo está acontecendo no universo em que estamos. Como último ponto, mas não menos importante, você disse que tal ritual é marcado pela sua sonoridade, uma conhecida impossibilidade visto a extensão dos meus poderes, já que fui amaldiçoado apenas com a capacidade de enxergar outros mundos. Considerando tudo isso, como você espera que eu fique tão animado com o que está me prometendo?
A primeira resposta dele àquelas palavras foi um silencioso olhar de perplexidade que, diante da sua palpável decepção, era a única devolutiva possível para aquele comportamento insensato. Felizmente, meu companheiro se deu ao trabalho de elaborar uma resposta poderosa, capaz de abalar a apatia que sustentava a minha pobre alma.
— É justamente por conta dessa mentalidade fechada e pequena que você não consegue expandir seus próprios poderes – começou utilizando um tom incrivelmente vazio. – Você recebeu um dom incrível, sob circunstâncias que vão contra tudo aquilo que conhecemos sobre os paranormais, e vem apresentando uma sorte inesperada em relação ao imprevisível funcionamento das suas habilidades que contrariam a lógica. Mesmo assim você mantém essa necessidade de estar envolto por autopiedade, e continua preferindo ver o mundo acontecer ao seu redor do que tomar qualquer atitude. Por mais que eu tenha interesse em arrastar você para todos os lados e ensinar tudo o que sei sobre as diferentes dimensões visíveis, a principal mudança deve vir de você – ele se afastou, então, dos limites do terreno, expressando com as mãos o desejo de eu tomar a iniciativa daquela invasão. – O que me diz: vai continuar escolhendo ficar para trás, preso em uma mediocridade passiva, ou vai me permitir acompanhá-lo, na direção de um futuro brilhante?
Meu rosto assumiu uma coloração avermelhada que não condizia com a complexidade de sen-timentos que afloravam dentro do meu peito. Demorei longos instantes para perceber que parte da raiva que eu sentira diante daquelas palavras assertivas estava sendo substituída por um sentimento de vergonha que jamais havia experimentado. Afinal, ele tinha razão em boa parte dos seus argumentos. Eu havia vivenciado muitas coisas nas últimas semanas, e aprendido mais do que esperava sobre o funcionamento do meu e de outros universos, mas as mudanças secundárias a esses aprendizados haviam sido superficiais visto que eu teimava em me manter preso às minhas próprias limitações.
— Eu vou com você – respondi, enfim, com os punhos cerrados pendendo ao lado do corpo. – Mas você tem de me prometer que iremos sair o mais rápido possível caso alguém nos encontre.
— Pelo visto as mudanças até podem vir a se manifestar, mas elas são incapazes de atravessar a sua inflexibilidade moral – comentou com um sorriso, mostrando-se surpreendentemente satisfeito. – Vamos lá. Eu o ajudo a escalar o muro. Admito não saber quanto tempo ainda temos disponível.
Por sorte, ele continuava sendo uma criatura simples, incapaz de guardar qualquer mágoa por situações que estivessem além do seu limitado controle. Se dependesse dele, todos os problemas do mundo poderiam ser resolvidos com a leveza com a qual levava a vida.
Não tardei a aceitar sua ajuda de bom grado, escalando o muro da forma mais sorrateira que consegui, ainda com medo de ser flagrado. De onde estávamos, não podíamos dimensionar o quão grande era aquele terreno, muito menos o quão bem cuidado aquele infinito amontoado de grama encontrava, uma raridade visto a sua localização. No centro do local, um conjunto de pedras recortadas misturavam-se com a paisagem do mundo que assistíamos, criando uma so-breposição quase proposital.
Inúmeros sereianos repousavam sobre aqueles acidentes geográficos, encarando a superfície do Oceano com olhos apreensivos, como se já não aguentassem esperar. Vários outros juntavam-se ao grupo vindo de todas as direções, formando um inesperado cardume prateado conforme na-davam contra os raios solares com uma naturalidade fantasmagórica. Quando o grupo cobriu todo o espaço que conseguíamos enxergar, as criaturas se eriçaram ao mesmo tempo, partindo em sincronia em direção ao solo escondido entre as pedras de antes, sumindo por debaixo da grama em que pisávamos.
Aproximamo-nos do ponto em que eles desapareceram com uma cautela indevida, apenas para confirmarmos a impossibilidade de enxergar algo: nós sabíamos que o local em que os sereianos agora estavam escapava ao nosso universo. Felizmente aquele era um problema fácil de ser resolvido, a despeito dos riscos envolvidos.
— Não vamos conseguir fugir disso. Vamos ter de desligar os filtros do nosso mundo caso tenhamos pretensão de presenciar algo – comentou o guia, com uma tranquilidade assustadora.
— Você deve realmente estar perdendo a cabeça. Nós estaremos completamente vulneráveis se apagarmos o nosso próprio universo. Já imaginou se alguém nos encontrar?
— Se isso porventura acontecer, seremos apenas puxados de volta a nossa triste realidade, na qual passaremos um agradável anoitecer em regime de privação de liberdade, após uma tarde justificando com argumentos fantasiosos um crime completamente mundano – ele finalizou aquelas palavras com os dentes expostos, incapaz de economizar no sarcasmo. – Não vou espe-rar por mais tempo. Sinta-se à vontade para me acompanhar.
Dito isso, ele foi envolvido por um silêncio palpável, mergulhando em um transe que, para aqueles ignorantes às atividades paranormais que exercíamos, podia ser confundido com a mor-te. Suspirei fundo quando o involuntário pensamento sobre o acompanhar cruzou a minha men-te, fazendo questão de relembrar o quão estúpida aquela ideia soava.
Antes que eu pudesse formular sequer um pensamento sobre o assunto, porém, levei minhas mãos à cabeça, praguejando baixo enquanto apagava um a um os filtros que compunham a mi-nha própria realidade, mergulhando sem amparo no que parecia ser uma cratera submarina. Dentro desta, as criaturas que havíamos perseguido durante todo o dia amontoavam-se de forma inquieta umas sobre as outras, aguardando por um desconhecido milagre enquanto cantarolavam músicas indistinguíveis aos meus ouvidos.
Os sereianos permaneceram naquele estado de agitação por vários minutos, vociferando acordes que eram reencenados de forma precária pelo meu parceiro, até que algo invisível perturbou a natureza daquele cenário expectante. As criaturas não demoraram a postarem-se sobre as barba-tanas posteriores, com os olhos fixos em um céu que estava longe de ser alcançado. Percebi apenas quando o Sol começou a desaparecer diante da minha atenta vigília que seres colossais surgiam acima de nossas cabeças.
Eram dragões aquáticos sem forma definida, ora lembrando jubartes pré-históricas, ora assu-mindo o corpo esguio de elegantes serpentes marinhas. Desfilavam aos montes próximo à su-perfície que guardava o ponto em que estávamos, carregando consigo uma imponência que eu jamais havia presenciado. Não demorei a compreender que aqueles eram os sealords descritos
na enciclopédia do meu companheiro, muito menos tive dificuldades em prever o que iria acon-tecer em seguida.
Com as presas à mostra, e as garras em riste, centenas de sereianos mergulharam em direção as suas presas com uma velocidade impressionante, atacando-as com movimentos rápidos e bru-tais, que pareciam mágicos quando assistidos a distância. Como se não passassem de objetos animados desprovidos de vida, os sealords não mostravam qualquer resistência, desfalecendo diante do poder dos seus agressores conforme seguiam invariavelmente a rota que haviam esti-pulado. Não se passou muito tempo até que os sereianos começassem a retornar para a cratera em que estávamos, carregando os trunfos de uma batalha que jamais teriam perdido, enquanto exibiam em seus semblante uma alegria tola, e em suas bocas uma cantoria capaz de agradar os ouvintes mais exigentes.
Por instantes, tive inveja do meu companheiro. Desde criança, ouvi relatos quanto à beleza do canto produzido pelas criaturas mitológicas aquáticas, descobrindo recentemente a possibilidade de que em algum lugar elas fossem reais. Mesmo assim, quando enfim estive diante da possibi-lidade de apreciar a beleza de algo único, mesmo entre os infinitos universos conhecidos, eu mais uma vez era forçado a aceitar minha própria limitação: possuía um dom incrível, porém pequeno diante da imensidão daquilo que existia.
Envolto por pensamentos inoportunos, quase não percebi que todos os sons haviam desapareci-do da minha mente. Em desespero, levei minhas mãos às orelhas, na fútil tentativa tanto de ava-liar a integridade daqueles órgãos, quanto de compreender quais filtros poderia ter desativado inconscientemente. Após poucos instantes, porém, notei que não estava completamente surdo. Afinal, conseguia identificar o suave som da maré chocando-se contra rochas longínquas, e o doce canto de gaivotas que sobrevoavam lugares inóspitos em busca de alimento, reproduzindo sons que podiam ser discernidos até mesmo debaixo d’água. Aos poucos, uma encantadora me-lodia, desempenhada por criaturas que carregavam em suas células a lembrança de músicas ancestrais, chegava aos meus ouvidos, obrigando-me a derramar lágrimas de excitação.
Fechei os olhos involuntariamente, permitindo-me ser envolvido pela música produzida pelos sereianos com a mesma delicadeza com a qual um dia abraçara meus irmãos, entregando-me a um ritual estrangeiro. Aquela inesperada cantoria continuou por um período indeterminável, roubando o tempo ao seu redor com uma naturalidade hipnotizante, até cessar de forma abrupta, deixando apenas memórias pouco confiáveis como provas de que um dia ocorrera.
Permaneci de olhos fechados por mais alguns instantes, na esperança de conseguir capturar no-tas perdidas antes de ser obrigado a despertar daquela experiência indescritível. Percebendo o quão frustrante seria gravar algo que não poderia reproduzir, dei início ao processo de reativa-
ção dos filtros que havia desativado, retornando aos poucos a minha própria realidade. Assim que voltei a enxergar a grama que cobria o terreno privado em que estávamos, deparei-me com um gigantesco sorriso.
— Eu estaria enganado em considerar que você, meu caro amigo, foi agraciado com a possibili-dade de apreciar este maravilhoso ritual? – questionou meu guia, em um tom que transitava entre a inquisição e a curiosidade. – Se sim, devo dizer que a cada dia você se torna um sujeito mais interessante.
Conforme eu compreendia o significado daquelas palavras, e da incoerência de tudo o que havia vivenciado, dei dois passos involuntários para trás, como se não conseguisse arcar com o peso do mundo.
— Você não estaria – respondi, obnubilado. – Mas como...?
— Para a nossa infelicidade, o como eu ainda não consegui delimitar, mas o porquê eu posso inferir
com absoluta certeza: você aparenta estar finalmente tomando gosto por sua própria vida, o que vem se refletindo na inesperada evolução dos seus poderes.
Permaneci em silêncio por mais alguns instantes, esperando por qualquer complementação inte-ligente daquele parecer, sem resposta alguma. Não sabia ao certo o que esperar daquela explica-ção tão antropocêntrica. Afinal, era um descaso com o grandioso Acaso acreditar que os poderes de um paranormal qualquer pudessem estar evoluindo por conta de algo tão subjetivo.
— Adoraria permitir que você continuasse apreciando esse processo de evolução, mas devo trazer uma pergunta que será de fundamental importância para nossa relação: a experiência que tivemos valeu os riscos que supostamente corremos?
— Sem sombra de dúvidas. Essa foi de longe uma das experiências mais encantadoras que já vivenciamos juntos!
— Fico feliz que tenha respondido com tanto entusiasmo, meu caro. Recomendo que você man-tenha esse sentimento em mente quando estiver diante das possíveis consequências dos nossos atos.
Incapaz de compreender de imediato o que ele quis dizer com aquilo, não pude esboçar qualquer tipo de reação. Foi apenas instantes depois, quando escutei gritos acusatórios que pareciam vir de mais perto do que o esperado, que notei a presença de dois homens fardados aproximando-se de onde estávamos, furiosos por terem sido obrigados a perseguir invasores em plena luz do dia. Em desespero, procurei pela figura do meu irresponsável guia, sem encontrá-lo nas redondezas.
Após suspirar profundamente, buscando uma paz que parecia impossível, concluí que não seria de todo terrível fugir de seguranças quando de bom humor.
- Gabriel Ract -
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