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Solstício de Inverno

Atualizado: 25 de jul. de 2022

No hemisfério sul, lar de uma infinidade de diferentes povos e culturas sobreviventes a anos de escravidão e alienação financiadas por povos autoproclamados desenvolvidos, o dia 21 de Junho não marca apenas o início oficial do inverno. Com a chegada de turbulentas frentes frias, que trazem desde temperaturas abaixo do suportado pelos seres humanos a períodos de estiagem prolongados, muitas civilizações mergulhavam em meses de fragilidade social e estrutural que, não raro, eram responsáveis por finais precoces. Buscando proteção durante este conturbado período, diferentes deuses e entidades eram invocados durante o solstício de inverno, criando uma proposital fragilidade entre o mundo físico e o espiritual que dificilmente poderia ser reparada. Uma falha dimensional que gera um contato íntimo entre dois mundos que nunca estiveram destinados a se encontrar.


Com o decorrer dos séculos, a evolução humana garantiu a sobrevivência de muitos desses povos a despeito do passar das estações, garantindo a formação de grandes conglomerados que eram imunes as bruscas variações de temperatura, assim como a inevitável falta de alimentos. Concomitante ao sucesso sociológico dos humanos, sucedeu-se uma perda progressiva da espiritualidade de outrora, seja em nome de crenças mais simples de serem seguidas, seja pelo fortalecimento do ateísmo. Todo esse cenário de transição culminou em um descaso quanto a fragilidade espiritual anteriormente gerada pelos próprios humanos, com o abandono de antigas tradições e rituais criados unicamente para apaziguar poderosos espíritos e garantir prósperos meses durante a estiagem. Por sorte, ainda existem criaturas que, independentemente do motivo, mantém costumes que agradam as diferentes entidades envolvidas com o inverno, conseguindo assim evitar a brutal ira destas.


Gabriel, nosso corriqueiro protagonista, fazia involuntariamente parte dessa categoria de criaturas. Tratava-se de um jovem paulistano apático e dono de crenças que raramente conseguiam ultrapassar o plano material, ficando reservadas para o potencial da humanidade de gerar coisas boas, caso assim desejasse. Gabriel certamente não conseguia enxergar as criaturas etéreas que deslizavam pela rua onde morava, procurando consolo enquanto seguiam a direção do vento, muito menos o delicado som de estilhaçar que escrachava a destruição da barreira que separava a sua realidade daquela formada por tudo o que era eterno. Mesmo assim os seus pensamentos possuíam uma força inegável, e a rotina que vinha mantendo nos últimos anos reverberava por planos que ele desconhecia.


Há tempos ele vinha reservando a data do solstício de inverno para questões que iam além da troca das estações, e muito além de sua própria pessoa. A motivação havia certamente se transformado nos últimos anos, porém a dedicação envolvida se mantinha a mesma. Embora os primeiros pensamentos de Gabriel ao acordar não demonstrassem toda a sua força de vontade, se resumindo a questionamentos mundanos sobre possuir roupas o suficiente para aguentar a primeira semana de frio sem parecer um terrário de fungos ou sobre a necessidade imediata de um capuccino recheado com canela sem que precisasse sair debaixo de seu edredom, ele tinha plena consciência de que possuía obrigações que exigiam a sua atenção.


Após resgatar em seu âmago todas as forças para enfrentar as temperaturas amenas que, no Brasil, soavam como verdadeiras nevascas, finalmente conseguiu se arrastar para fora da cama. Antes que pudesse sequer racionalizar todas as ações que vinha tomando, encontrava-se de banho tomado, trajando roupas que não saiam do fundo dos seus armários há meses, pronto para qualquer aventura que fosse. Os únicos objetos que o impediam de sair de casa de imediato eram duas latas de refrigerante de cola sem açúcar que congelavam dentro da geladeira e uma toalha de mesa quadriculada, dobrada a perfeição, próxima do molho de chaves do seu apartamento. Ele precisaria daqueles itens no lugar onde se encaminharia.


As próximas horas daquele dia foram perdidas dentro de um carro. Felizmente ou não, nenhum endereço localizado em São Paulo e arredores era inacessível por automóveis terrestres, apenas temporalmente distante. Aquela afirmação se tornava ainda mais verdadeira em manhãs como aquela, onde o início da temporada de inverno obrigava muitos usuários do transporte coletivo a reconsiderarem o uso pessoal de veículos, resultando em um número incongruente de automóveis transbordando as ruas da cidade. Por sorte, Gabriel era dono de uma calma que beirava a infinitude, e de pelo menos duas playlists que poderiam o distrair antes de aquele momento se tornar mais palpável. Sem que sequer tivesse tempo de ficar enfadado com a situação, estava diante do cemitério onde jaziam boa parte de seus familiares.


Logo na entrada Gabriel sentiu o corpo ser tomado uma rotina automática, fruto da repetição em múltiplos cenários anteriores. Ele passara batido pelas salas cerimoniais, sempre recheadas de pessoas tristes em estado de assimilação quanto ao que estava acontecendo – processo pelo qual ele mesmo já havia experimentado em outras ocasiões –, assim como pela simplória lanchonete que, alheia a boa parte do sofrimento que dominava aquele local, vendia desde bebidas quentes por preços exorbitantes a gnomos que carregavam recados cheios de saudades. O que ele procurava ficava muito além das áreas comuns do cemitério, perdido no mar de túmulos que despontava do lindo jardim construído sobre aquelas terras.


Não tardou a encontrar a lápide que procurava exatamente no lugar onde a havia deixado em sua última visita. Ela continuava sendo dona de uma formosura única, representando um marco de delicadeza e insignificância frente a todos os memoriais megalomaníacos que a cercavam. Chamava a atenção apenas o nome da criatura, delimitado com letras garrafais, e a idade discrepante com a dos demais. Existia algo de odioso e desnatural na morte de uma criança, que fazia tanto a alma de humanos desconhecidos quanto a de espíritos sofrer. Infelizmente, ela não escapava dessa máxima.


Quase conformado em relação a estes pensamentos, Gabriel não demorou a se ajeitar em frente ao memorial. Após cumprimentá-la como teria feito com grandes amigos, esticou a toalha a poucos centímetros da lápide de pedra com uma elegância improvável, acomodando-se sobre essa com um cuidado quase paternal, como se fosse despertar algo indesejado caso contrário. Logo abrira os refrigerantes que trouxera consigo, derramando, sob a luz de olhares recheados de curiosidade, metade do conteúdo de um destes sobre o pouco de terra livre que sobrara a sua frente. Depois de desejar saúde a ambos, deixou o restante da lata sobre a lápide fria, em sinal de que voltariam a brindar antes do fim do dia.


Diante do que restara da pessoa que mais amara, diante da irmã que tornava tudo o que o futuro um dia o havia reservado em promessas dignas de serem esperadas e, acima de tudo, diante do seu maior obstáculo em acreditar que algo além do que consegue ver pudesse comandar aquele mundo regido por injustiças, Gabriel novamente se viu invadido por memórias vívidas que retratavam tempos longínquos, quase felizes. Eram memórias de invernos passados, de quando ambos ainda caminhavam no mesmo plano material, dividindo a mesma casa, a mesma família e expectativas estranhamente semelhantes. Estas remetiam a um período quando passavam os solstícios de inverno debaixo de diferentes cobertores, analisando de forma técnica a qualidade de desenhos de origens duvidosas enquanto se empanturravam de refrigerantes e guloseimas que certamente não faziam bem as suas saúdes. Ou de quando passavam aquele mesmo dia recepcionando familiares de diferentes cantos da cidade, que se encontravam na casa onde moravam apenas para festejar o crescimento daquela criatura dona de imensa luz e benevolência, que os recebia com toques de sarcasmo pontuais que o próprio Gabriel fazia questão de transmitir a mesma, e que ela adorava. Ou até mesmo de quando passavam aquela data em qualquer outro lugar, fugindo da escuridão indigesta que não raro imperava no lugar que deveria os proteger. Memórias de um tempo quando ela ainda estava viva e ele, sedento por tudo aquilo que o universo pudesse os entregar, se encontrava ligado a esta por laços que ninguém conseguia compreender.


Após o acidente, a despeito da distância que separava o corpo material de Gabriel do vazio que ele acreditava ter tomado a alma da garota, ele continuava a visitá-la. Fosse durante a data dos principais eventos que rodeavam a relação dos dois. Fosse durante períodos de solidão onde a saudade fosse o sentimento prevalente e, assim, exigisse algum grau de conforto. Fosse durante os raros momentos de alegria, em que certas conquistas precisassem ser compartilhadas com alguém. Nessas visitas Gabriel tagarelava por horas a fio, contando tudo o que estava transcorrendo em sua vida desde o último encontro, e sobre todas as suas inseguranças e certezas frente ao progredir do tempo, como se ela ainda pudesse escutá-lo. Independentemente da progressão da conversa, em determinado ponto sempre haveria um derramamento de lágrimas, que servia mais para enxugar a dor da alma dele do que para representar o quanto este sentia falta dela. Quando voltava a si, havia pouco a ser acrescentado: nenhuma informação nova teria o mesmo gosto depois de exteriorizadas tantas mágoas acumuladas, ainda mais no ambiente bucólico e gélido que compunha aquele cemitério. Envergonhado, ele terminara o monólogo com as únicas palavras que ainda não havia enunciado:


“Feliz aniversário, minha pequena. Sinto imensuráveis saudades de ti”.


Com isso, ele derramara o restante do refrigerante sobre a lápide a sua frente, finalizando aquele íntimo ritual que, apesar do desconhecimento deste, apaziguava o coração de diversas criaturas, garantindo que a fragilidade espiritual que recaia sobre São Paulo continuasse não sendo tão danosa aos humanos que ali viviam. Afinal, com o passar dos anos os rituais ensaiados de outrora podiam até mesmo perder os seus valores e importância, não raro sendo esquecidos pela história, mas os sentimentos genuínos gerados pelos humanos continuavam sendo uma forma de conexão e apelo frente as grandes entidades. E existem poucos sentimentos tão poderosos quanto o amor de um humano por alguém que o aguarda ansiosamente em outro plano.


- Gabriel Ract -

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