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O Alquimista de Bastos - Prólogo: O Último Encontro

  • gabvieiramos
  • 17 de ago.
  • 6 min de leitura

Existem limites sobre o quanto um ser humano pode influenciar os desdobramentos de seu tempo, mas não sobre o quanto esse, por intermédio de pequenos atos, pode desencadear uma enorme cascata de eventos capazes de ameaçar a paz vigente, ou de apaziguar o caos naturalmente emanado pelas criaturas mortais. Simon costumava levar esse pensamento em mente sempre que se propunha a fazer algo potencialmente estúpido. Especialmente quando se mostrava disposto a colocar a própria vida em risco.


Aquela era a terceira noite sem luar que assolava a Europa Ocidental em um período inferior a um mês, um indício de que forças esotéricas ignoradas por muitos estavam em ação, obrigando não apenas os ratos a saírem de suas tocas em busca de alimento, mas também a mobilização daqueles familiarizados com o proibido. Simon compunha aquela seleta lista de humanos, e reconhecia a importância de seus deveres compulsórios para a segurança daqueles que prezava. Mesmo assim demorou-se para sair da própria casa, prolongando por minutos a tarefa de vestir o pesado casaco de couro, o único em sua posse capaz de cobrir as marcas do tempo que escondia nos braços, incompatíveis com os anos que havia caminhado sobre a Terra. Conforme alcançava a saída para a rua, encontrou um exausto par de olhos acastanhados refletidos sobre um de seus espelhos, que o fizeram ser tomado por uma raiva justificada.


Assim que a primeira patrulha noturna ultrapassou o ponto onde morava, este esgueirou-se porta afora, lançando-se em direção a um breu que não se comparava àquele que planejava adentrar. Tratava-se de um local formado por sombras familiares que, à distância, tomavam a forma de antigos companheiros de profissão, unidos em um período no qual a alquimia não passava de uma pseudociência obscura, e não a força motriz que agora os mantinha vivos. Ele não precisou se arrastar por becos e vielas por muito tempo para encontrar o taciturno estabelecimento que procurava. Por longos instantes, memórias de uma vida arquitetada sobre erros invadiram seu cérebro lentificado, impedindo-o de cruzar a pesada porta de carvalho que o separava dos caminhos elencados pelo Destino. Após bater algumas vezes no objeto, seguindo o compasso de músicas de origem desconhecida, graves olhos surgiram por uma conveniente fresta.


— O que você, estranho encapuzado, procura em uma região tão perigosa durante uma noite desprotegida?


— Procuro por respostas para os maiores mistérios do universo, com o objetivo de trazer paz a um coração atordoado pela curiosidade. Procuro pelo início e pelo fim de tudo, tal qual um Ouroboro caça a própria cauda. E algumas outras frases regadas em esoterismo que Marc espera que repitamos sempre que nos encontramos.


Após aquelas palavras, um estrondoso som de metal colidindo contra a madeira maciça anunciou a abertura da porta, convidando Simon a um ambiente mais agradável do que a escuridão que a pouco o acompanhava. Ele hesitou, porém, em dar o primeiro passo, deixando-se dominar por pensamentos que conhecia serem perigosos, permitindo-se estar por entre sonhos grandiosos que, diante daqueles à sua frente, não passavam de infantilidades. Foi apenas quando sentiu o peso de cinco olhares conhecidos recaindo sobre o decrépito corpo que habitava que ele permitiu-se relaxar, assumindo rapidamente uma expressão de orgulho que há anos reconhecia como sendo apenas sua; uma máscara frente a uma sociedade que não respeitava os limites de suas ambições.


— Peço desculpas pelo atraso – começou, enquanto se livrava do enorme casaco, pendurando-o próximo à lareira que crepitava perigosamente alta. – Tem sido cada vez mais difícil despistar a patrulha noturna desde que ela foi assumida por um vice-rei conhecedor da alquimia proibida.


— Sugiro que deixe as desculpas para o lado de fora – retrucou o rapaz que o recebera, colocando as pesadas mãos sobre os ombros de Simon; existia um quê de diversão por detrás de seu tom acusatório. – Já tive a chance de assisti-lo fazer coisas mais perigosas trajando um físico ainda mais frágil do que o atual. Admita, meu amigo, que você se atrasou pois estava com medo de perder novamente ou, quem sabe, pela possibilidade de, dessa vez, terminar o jogo completamente esgotado.


Lembranças dolorosas involuntariamente inundaram a mente de Simon, obrigando-o a reviver eventos que pareciam ter transcorrido há séculos. Ele fez questão de se desvencilhar o mais breve possível daqueles pensamentos, enquanto tentava escapar das mãos que o seguravam contra sua vontade. Foi durante aquela tentativa ridícula de libertação que o alquimista encontrou o olhar da única criatura que não estava se divertindo às suas custas. Tratava-se daquele com a aparência mais jovem entre os presentes, o que contrastava não apenas com o ar de sabedoria que o envolvia, mas também com o fato de ele ter sido um dia o responsável por unir pessoas tão distintas sob uma mesma bandeira. Sentado no centro da única mesa exposta no salão, este embaralhava pesadas cartas com uma calma que parecia transcender a ideia do tempo. Simon inconscientemente abriu um largo sorriso ao perceber que o rancor que nutria por aquela criatura serena sobrevivia à passagem das décadas.


— Eu estive aguardando por você, Simon – comentou o estranho, quando julgou possuir a atenção de todos ali presentes; seus olhos, envoltos por um brilho avermelhado quase sobrenatural, evitaram prolongar-se sobre o corpo do recém-chegado, uma cortesia que reservava apenas aos mortais de sua preferência. – Até mesmo considerei a possibilidade de iniciarmos os rituais com um jogador a menos, uma enorme preocupação.


— Infelizmente, eu não os presentearia com tamanho desprazer. Sou fiel aos contratos que assumi em nome de uma alquimia mais justa, e assim continuarei sendo até o final de meus dias. Como disse da última vez, ainda tenho muito a oferecer a essa trupe.


O anfitrião lhe respondeu com um sorriso bondoso, que não foi repetido pelos demais convidados. Sem desperdiçar a atenção que possuía, ele dividiu elegantemente o baralho que carregava por entre os seis lugares que compunham a mesa na qual se reuniriam. A mesma mobília que, em um passado não tão distante, servira de ponto de partida para as piores de suas artimanhas: sejam as que resultaram em saudosos fracassos, sejam as que auxiliaram no progresso da alquimia moderna. Foi apenas quando se certificou de que todos estavam posicionados em seus devidos lugares que este, convocando velhos poderes que um dia confidenciara a si mesmo, iniciou os conhecidos rituais.


— A despeito da acidez de Simon, sigo imensamente contente que ainda possamos nos reunir sempre que o Acaso exigir que o façamos. O mundo não tem sido o mesmo, e a alquimia que desenvolvemos nessa mesma taverna tem se voltado contra a natureza de sua própria origem. Mesmo assim nós persistimos, e seguimos vivendo de acordo com as regras primordiais que trazem equilíbrio ao universo – uniu, então, as mãos como se em prece, com o simples objetivo de desvencilhar a mente do discurso que havia incitado. – Acredito que já tenhamos esperado tempo demais. O que acham de começarmos a jogar?

 

*** 


Simon encontrava-se longe da taverna quando finalmente conseguiu trazer um pouco de ar para dentro dos pulmões. Seus companheiros de jogo, infelizmente, não tiveram a mesma sorte, permanecendo inertes dentro da construção a despeito da volumosa camada de fuligem que forçava caminho para os céus. Labaredas avermelhadas não demoraram a lamber o telhado das casas próximas ao estabelecimento, chamando a atenção de preocupados vizinhos, ignorantes aos eventos que haviam transcorrido naquela noite.


Apenas quando alcançou uma viela afastada foi que Simon permitiu-se sorrir. Suas mãos tremiam de maneira incontrolável, ação que não conseguia delimitar se era resultado da excitação pelo que havia transcorrido, ou da inquietante fraqueza que tomara seu corpo após se assimilar ao objeto que tanto havia desejado. Tomado por um delicioso estupor, ele quase deixou passar a oportunidade de sair de onde estava, misturando-se com facilidade ä infinidade de pessoas que se juntavam para assistir, em completa catatonia, a magia do fogo sobre os calçamentos enlameados da cidade.


Demorou-se algum tempo para que as devidas atitudes fossem tomadas, com a convocação das autoridades responsáveis por lidar com aquele tipo de catástrofe, e o início dos cuidados com as construções diretamente afetadas pelo incêndio. Demorou-se ainda mais para que a população cogitasse a possibilidade de existirem sobreviventes dentro daquele estabelecimento até então ignorado. Já era tarde quando iniciaram o resgate daquelas almas sem salvação.


Simon assistiu àquele espetáculo com uma expressão satisfeita. Não tardou, porém, a se enfadar com a própria obra, dando as costas ao que havia restado de sua antiga trupe de alquimistas. Seu olhar, jovem e altivo, possuía um brilho avermelhado quase sobrenatural, que independia das chamas que ardiam sem remorso sobre os últimos resquícios de seu passado.


Naquele momento, ele inocentemente acreditava ter se tornado um homem livre de suas obrigações mundanas.

 
 
 

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