Desde crianças sabemos o que o futuro reserva para cada um de nós. Alguns garantem que isso seja resultado da formação do nosso caráter, que cria as suas primeiras raízes durante essa época da vida. Outros, que seja fruto do nosso primeiro contato com tudo de importante que existe no mundo, concomitante à criação de conceitos que nos acompanharão até a nossa morte. Por fim, há aqueles que, talvez por serem menos filosóficos, acreditam em destino e nada mais.
David nasceu de pais deste último tipo. Dotados da sua dose de sofrimento, e ignorantes da maior parte dos mistérios terrenos, criaram o filho sempre imaginando um futuro abençoado, digno de um verdadeiro escolhido.
Por conta disso, relevaram muitas coisas: o seu nascimento improvável; os caninos maiores do que o esperado; as estranhas marcas que carregava nas mãos; o seu temperamento contido, controlado, quase medroso; o temor de que algo ruim pudesse acontecer caso relaxasse por um instante sequer. Nada disso qfteve efeito positivo no garoto, pelo contrário. Porém ninguém nunca se importou com isso, nem mesmo quando já era tarde demais.
O garoto lembra-se bem de quando tudo desmoronou, em uma sucessão rápida de fatos que seriam marcados em sua memória como fogo, e revividos em sua mente inúmeras vezes. Todas elas começando no momento em que as coisas deram errado pela primeira vez.
David tinha oito anos na ocasião. Como de costume, estava sendo incomodado por alguns de seus colegas de classe, por motivos que se perderam no tempo. É algo bem comum entre as crianças, por ignorância ou falta de ferramentas sociais, não respeitar os diferentes, tratando-os com violência.
O garoto nunca se defendia quando isso acontecia, apenas abaixava a cabeça. Tão inocente quanto os que o atormentavam, pensava seriamente que não tinha o direito de lutar contra aquilo, e que aquelas provocações eram naturais por ele ser tão estranho. Afinal, diferente dos colegas, ouvia vozes em sua cabeça e tinha sonhos esquisitos. Era louco, sabia disso.
Naquele dia, porém, não estava com paciência suficiente para assumir o papel de culpado. Por ironia, nunca conseguiu se recordar do motivo para tal. Só se lembrava de que, no fim da aula, depois das provocações cotidianas, se exaltou e respondeu com rispidez a alguns dos seus iguais.
A reação foi instantânea. Os garotos, visivelmente ofendidos, não pensaram muito sobre o que fariam. David havia quebrado a hierarquia, portanto não podia reclamar sobre o seu castigo.
Impotente e cheio de raiva, ele só conseguiu se abaixar enquanto os colegas se aproximavam, com os punhos erguidos. Sentiu-se solitário e confuso, o suficiente para que as estranhas vozes voltassem a aparecer. Era sempre ele, um homem ressentido, dono de uma voz imponente e calorosa. Todas as vezes iludia-o com as grandezas que o garoto conseguiria adquirir caso cedesse o controle e lhe permitisse tomar o seu corpo. Tudo ficará bem, repetia incansavelmente.
Talvez pelo cansaço, talvez pelo ódio, talvez pela insistência, David lembra-se apenas de ter fechado os olhos e mergulhado, por vontade própria, em uma escuridão pegajosa e fria. Alguns instantes depois, desesperado, ele percebeu o seu erro e conseguiu se libertar. Abriu os olhos, em pânico, mas já era tarde: aquilo que sempre temera havia se tornado realidade.
Era uma cena da qual nunca se esqueceria. Cinco dos seus colegas estavam no chão, machucados de formas que sua mente infantil não conseguiu assimilar. Estavam todos vivos, porém visivelmente moribundos, quase mortos. Os poucos que permaneceram conscientes haviam dado alguns passos para trás e choravam baixo, sem palavras. Todos o encaravam com muito medo.
Confuso e transtornado, David demorou a se convencer de que aquilo era mesmo verdade. Encarou as mãos e pôde notar que uma fina aura negra as cobria. Estavam limpas de sangue, mas sem dúvida eram culpadas. Seja lá o que tivesse acontecido, não podia negar, ele havia sido o responsável.
Amedrontado, ignorou os olhos que o encaravam, e fugiu.
- Gabriel Ract -
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