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Ela

Atualizado: 26 de nov. de 2022

Nenhuma história deveria começar com um desejo escrachado. Era isso o que a minha mãe, ávida leitora, não raro dizia ao começar uma obra que não a agradaria completamente. Seria imprudente da minha parte, porém, iniciar esse relato sem avisá-los de que eu sinceramente não gostaria de tê-la encontrado naquela manhã. Não que tenha ocorrido alguma desavença recente entre nós dois. Muito menos que ela tenha me causado algo do qual eu pudesse reclamar. Afinal de contas, eu amava aquela criatura sorridente com a energia de todas as células do meu ser.


Encontrei-a, como das últimas vezes, por obra do Acaso. Assim como a sua natureza manda, ela estava velando o corpo de uma idosa com uma atenção recheada de doçura, quase maternal aos olhos desatentos. Sentindo que alguém a observava, subitamente procurou pelo encontro do meu deslumbre. Bastou que nossos olhares se cruzassem por instantes para que, com um sorriso, deslizasse em minha direção, arrastando os pés como se estes nunca tocassem realmente o chão.


Cercado por pessoas ignorantes a sua presença, tentei preterir ao máximo sua feição suplicante por atenção. Bastou, contudo, apenas ser atingido por seu característico cheiro de pétalas para perder completamente a razão, e desejá-la como há tempo fazia. Aqueles incapazes de enxergá-la não sentiram nada além de um calafrio correndo a espinha em sua presença. Felizmente ela conhecia o seu papel diante dos mortais, e não se importava nem um pouco em não ser notada. Satisfazia-se em saber que visitaria cada um deles ao menos uma vez na vida.


Sem deixar transparecer as minhas intenções, desliguei-me do grupo que seguia, entrando sorrateiramente no quarto onde a garota estava. Com um respeito mórbido que odiava, reservei um olhar profundo a senhora que jazia plácida em seu leito, movendo apenas o peito no compasso mecânico das máquinas que a mantinham viva. Em seguida voltei a minha atenção ao par de pernas que, inquietas, rodeavam todo o meu ser.


- Quanto tempo nós ainda temos? – perguntei.


- Poucos minutos.


- Uma pena. Soubesse eu que estaria por aqui, teria feito questão de ter vindo antes – comentei, enquanto me aproximava perigosamente do rosto dela, mantendo nossos sorrisos separados por poucos centímetros. – Como sempre, é um enorme prazer revê-la, minha bela dama.


Ela respondeu àquelas palavras com uma graciosa pirueta para trás, seguida por uma dramática e larga reverência. Depois, lançou-se por meio de rodopios por todos os cantos daquele quarto, impregnando o local com o seu cheiro de rosas em decomposição. Não demorou para que, mais uma vez, se entediasse com a própria inquietação.


- O prazer em vê-lo é, e sempre será, todo meu. Você sabe bem disso. Devo dizer, inclusive, que fico extremamente feliz por nossos encontros terem se intensificado nessas últimas semanas. Considero-os excelentes distrações.


Eu não tinha argumentos para discordar daquelas palavras. Dois meses enfurnado em um hospital foram o suficiente para que eu a encontrasse mais vezes do que havia conseguido nos últimos quatro anos. Embora existisse um claro encanto em vê-la, já não conseguia esconder o incômodo que sentia quando refletia sobre o significado daqueles encontros. Mesmo que soubesse disso, ela fazia questão de responder às minhas melancólicas observações com o mesmo sorriso sincero com que encarava o mundo: tudo o que viria a se desenrolar de sua presença estava atrelado a naturalidade que guiava a sua existência.


- Devo dizer que não aprecio este costume humano de prolongar a vida por meio de máquinas. Me frustra grandemente encontrá-los assim, desacordados – comentou, ao notar que eu não seria o primeiro a retomar a conversa. – Facilita muito a compreensão da partida o fato de não estarem sofrendo, porém me rouba os poucos instantes que cada vida a mim tem reservado. Sinto-me verdadeiramente alheia àqueles que deveria acolher.


Não existia qualquer traço de maldade naquilo que havia dito, muito menos qualquer ressentimento verdadeiro. Aquilo havia sido, afinal de contas, apenas uma constatação. Como comentado previamente, ela encarava o mundo e suas complexidades com a naturalidade que um dia lhe fora imbuída. Com exceção de sua aparência e vontades, não havia nada de humano na garota.


- Assim que nos despedirmos, escreverei uma carta grosseira aos diaristas deste setor. Pedirei, com certa agressividade, que parem de intubar os pacientes que certamente não conseguirão manejar. Assinarei o seu nome ao lado do meu, como peso argumentativo.


- Eu serei eternamente grata, meu caro. Não acredito, contudo, que pedir que médicos experientes deixem de fazer o seu trabalho fará bem a um jovem estudante. Especialmente quando ele diz responder por meu nome.


- Certamente que não, mas você me conhece: o que eu não faria para te ver sorrindo?


Ela não hesitou em me responder com um sorriso sincero. Em um movimento único, jogou todo o peso do corpo sobre os meus braços, obrigando-me a participar de uma valsa que eu seria incapaz de recusar. Embalados pelo ritmo silencioso de músicas que tocavam simultaneamente em nossas cabeças, cruzamos o quarto de ponta a ponta ao menos três vezes, guiados apenas pelo meu coração acelerado e o som de um incansável respirador mecânico. A cada novo passo eu me apertava mais àquela fria e adorável criatura, como se fosse perdê-la por entre os dedos caso contrário.


O sonoro alarme de uma vida chegando ao seu limite, porém, pôs fim ao nosso breve momento de intimidade. Deslizando para além do meu alcance, ela aproximou-se com rapidez da cama onde jazia a mulher moribunda. Após tocar gentilmente no rosto desta, comentou aquilo que eu tanto temia:


- Está chegando a hora.


Quase como um reflexo involuntário, assenti com a cabeça. Assim como ocorrera das outras vezes, fui abruptamente relembrado da dura realidade que marcava a nossa relação: nossos encontros duravam apenas até um último suspiro, nunca mais do que isso.


- Eu não sei por quanto tempo ainda vou aguentar isso aqui – comecei, sem sequer ter percebido. – Eu adoraria estar contigo, para sempre. Não vivendo esses pequenos vislumbres de eternidade.


Ela não respondeu de imediato. Por instantes optou por me encarar com severidade, deixando que o silêncio demonstrasse a sua resposta antes de qualquer palavra ser proferida. Aquela não havia sido a primeira vez que eu comentara algo tão infantil e sincero ao identificar o término de nossos encontros, em uma fútil tentativa de não somente prolongar o inevitável, mas também de reconquistar o direito de escolha que um dia eu havia perdido.


- Nós temos um acordo quanto a isso – respondeu ela, com uma secura diferente do habitual. – Você não pode partir antes de eu dizer que assim será feito. Tenho certeza de que não se esqueceu disso.


Um amontoado de memórias distorcidas tomou conta da minha mente. Lembranças de uma época na qual eu ainda possuía a falsa ideia de que tinha controle sobre a minha própria existência. Olhando do ponto de vista atual, não havia qualquer traço de felicidade em mim naquele tempo. Mesmo assim encaro com nostalgia e saudosismo a inocência que transbordava na época.


- Certamente que não me esqueci. Como poderia? Eu apenas não entendo o porquê de você ter feito o que fez. Não consigo acreditar que eu tenha algo de especial, algo que possa te interessar a ponto de me obrigar a continuar vivo.


- Você não possui. Você é apenas mais um ser humano estúpido, embebido por ideias fantasiosas sobre a vida e a finitude. Um humano, contudo, pelo qual eu me sinto estranhamento confortável em manter por perto – reaproximou-se com cautela, segurando firmemente o meu rosto com as suas mãos gélidas. – E eu desejo que continue aqui por mais algum tempo. Sofrendo, amando, chorando. Lembrando-se de mim sempre que alguém estiver caminhando ao meu encontro. Remoendo as minhas vindas inesperadas tanto quanto sente angústia com as minhas idas. Desejando-me e odiando-me da forma que bem desejar. Consegue continuar fazendo isso? – perguntou esbanjando olhos divertidos. – Se não por você, por mim?


Eu permiti que a minha irritação transparecesse por breves instantes, mas não consegui sustentar aquele sentimento por muito tempo. Quando a razão retornou ao meu corpo, notei que estava sorrindo, de forma verdadeira. Aquela resposta insensível e egoísta apenas reafirmava a minha posição dentro daquela improvável relação: eu não passava de uma distração, um objeto a mercê de uma criatura que tanto desejava, e que infelizmente passaria vários anos sem conquistar. E eu já não tinha forças para fazer algo que não a obedecer, aguardando ansiosamente por minha liberdade.


Satisfeita com o meu silêncio obediente, ela se afastou lentamente com um sorriso satisfeito nos lábios, retornando ao dever que a trouxera para aquele quarto.


- Sinto muito em lhe dizer que já não temos mais tempo juntos. Da próxima vez, certifique-se de aparecer mais cedo. E, por favor, tenha em mãos alguma informação que eu não saiba. Qualquer coisa banal que me faça entender melhor vocês humanos, ou que simplesmente me divirta.


Eu apenas acenei com a cabeça, enquanto a assistia desaparecer lentamente diante dos meus olhos, me encarando com a doçura que apenas aqueles alheios ao sofrimento são capazes de demonstrar. Ignorando a fútil tentativa dos monitores de buscarem por ajuda, afastei-me sorrateiramente das imediações do leito da paciente que alcançara a temida paz. Em minha mente, conseguia pensar apenas sobre quando nos encontraríamos novamente. E sobre qual curiosidade presentearia àquela que surgira junto ao universo, e que era familiarizada com a definição do infinito.


- Gabriel Ract -

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