Há alguns anos o mundo acadêmico foi abalado por Débora Almeida. Profissional venerada e de reconhecida postura moral, durante os seus anos de profissão ganhou fama por alguns de seus inquietantes trabalhos sobre os malefícios psicológicos da sociedade moderna, e sobre o alto grau de decaimento da inteligência emocional de indivíduos com formação acadêmica ímpar. Porém, foi apenas depois da conclusão de sua pesquisa mais longa, forjada por décadas de estudo com todos os seus pacientes, que ela mostrou ao mundo que veio para conquistá-lo.
Contrariando todas as críticas e a descrença dos profissionais de sua área, de que era impossível criar um roteiro de consulta que levasse em consideração as particularidades de cada paciente, ela conseguiu criar algo que atendia a esse padrão. Graças ao seu intelecto afiado, e sua dedicação e amor ao que fazia, Débora não apenas criou um manual de como atender um paciente psiquiátrico, mas o disseminou por todo o globo. Impressionados, nem mesmo as escolas mais tradicionalistas conseguiram negar totalmente a qualidade e utilidade daquela nova ferramenta, única naquele meio. Em menos de dez anos, o roteiro se tornou uma espécie de protocolo em clínicas de quase todos os países do mundo, com apenas uma crítica: não atendia a populações de baixa escolaridade.
Isso, porém, pouco importava. A doutora sempre deixou claro que nenhum estudo em psiquiatria ou psicologia poderia se tornar uma ferramenta universal. Debochada, ela ainda acrescentava que duvidava que um dia algum outro ser humano pudesse criar algo tão próximo da perfeição quanto o seu trabalho. Essa arrogância bem sustentada era uma das suas melhores qualidades.
Débora só perdia sua pose diante de seus pacientes. Fazia parte de seu mote profissional, e de todos os seus colegas de trabalho, que aqueles que os pediam ajuda travavam diariamente batalhas que nenhum terceiro poderia imaginar. Humildade e educação, segundo ela, eram o mínimo que eles deveriam oferecer ao mergulhar em suas histórias. E mais: depois de aceito um paciente, nenhum profissional tinha o direito de desistir dele. Por conta disso, todos se assustaram quando ela, claramente destruída, passou um de seus casos para uma de suas colegas mais antigas.
Rafael, o sujeito em questão, era um velho conhecido da clínica. Era um rapaz educado, com pouco mais de trinta anos, relativamente bonito e com uma boa condição socioeconômica. Ele sempre sorria ao conversar com os funcionários, e nunca pareceu pertencer àquele lugar. Se Débora não tivesse o abandonado, ninguém teria tido curiosidade de procurar por seu prontuário.
Caucasiano, agnóstico, brasileiro, Rafael Cardoso tinha trinta e dois anos. Apesar da idade, apresentava um papel de prestígio em um dos hospitais em que trabalhava como neurologista. Possui pai e mãe vivos e um irmão mais novo, e garantia não ter problema com nenhum deles. Nunca fez uso de tabaco ou de qualquer outra droga. Sem histórico de cirurgias relevantes, doenças crônicas ou internação psiquiátrica prévia. Não fazia uso regular de medicamentos. Morava sozinho. Nunca fora casado, e relatava dificuldade de arranjar uma parceira – queixa comum entre os pacientes. Por fim, possuía uma alimentação péssima, e hábitos de vida duvidosos, apesar de não serem alarmantes.
Apesar de existirem algumas anotações interessantes em folhas aleatórias, foi consenso entre os curiosos que, considerando a situação, os laudos de suas consultas eram desapontadores. Comparando-o com as dezenas de pacientes diários, podia-se dizer que ele possuía uma condição psicológica relativamente estável, e não parecia precisar de terapia.
Por sorte nenhum deles desistiu de procurar pelo que havia de errado. Em algum momento, em meio a centenas de folhas, foi encontrado um enorme questionário, a inovadora ferramenta criada e patenteada por Débora de Almeida. De forma geral, o teste era um grande e completo arsenal de perguntas, que englobavam praticamente todos os quesitos que um psiquiatra ou psicólogo gostaria de saber de seu paciente, de forma prática e de fácil compreensão. Ao folheá-lo, se assustaram ao perceber que, das diversas perguntas, apenas uma havia sido respondida. E de forma bastante incomum.
O que é ser completamente vazio?
“Essa é uma pergunta difícil. É realmente complicado explicar algo tão abstrato, amorfo e indefinível, e acho uma indelicadeza de sua parte, doutora, ter deixado apenas três linhas para fazê-lo. Por sorte eu tenho a experiência do meu lado, e o verso deste questionário (continua na próxima página).
Ser vazio consiste, antes de tudo, em um grande número de variáveis, complexas e inexplicáveis, que se casam e complementam, formando uma entidade muito mais completa do que o próprio ser que a abriga. Abaixo, deixo registrado algumas destas n variáveis, todas explicadas e comentadas por mim:
- Ser alheio a maioria das emoções/sentimentos¹: diferente do que muitos pensam, pessoas vazias tem, sim, sentimentos, e também tem grande consciência da existência destes. Porém, por motivos ainda não explicados, nenhum deles parece fazer muito sentido para nós, e eles praticamente não surtem nenhum efeito sobre as nossas ações e/ou julgamentos. Exemplo disso é que, por mais que conheçamos a alegria e a indignação, dificilmente sofreremos um ataque de riso incondicional, ou uma careta de repugnância sem nenhum toque de dramatização, atuação pura. Acho importante, porém, salientar que esta regra não é absoluta. Admito, e acredito, que deve haver algum limiar para que expressemos tais sentimentos. Ele deve ser apenas bem mais elevado do que o de uma pessoa normal.
- Raiva/Culpa/Outros sentimentos intensos se manifestam como sintomas autonômicos: isto é um fato. Estamos tão acostumados a não expressar nada diante os nossos sentimentos que, quando provamos algo um pouco mais potente, e em geral negativo, passamos verdadeiramente mal. Tremores, boca seca, náuseas, sudorese, astenia... todos estes são sintomas comuns que deflagram a nossa crise sentimental, e que mimetizam aqueles de um transtorno de ansiedade generalizado. Eu diria que isso pode estar relacionado a uma maior interação entre o nosso sistema límbico e os nossos núcleos bulbopontinos, ou apenas a ausência de habituação sináptica quanto a estes sentimentos alheios, intrusos, tão comuns para as outras pessoas.
- Ser incapaz de sentir felicidade²: embora a felicidade seja um sentimento intenso, como aqueles citados acima, ela é um caso à parte. Faz parte da natureza humana buscá-la desde o momento em que nascemos. Essa afirmação torna este item um dos, talvez, mais importantes da lista. Eu acredito que grande parte dessa incapacidade de sentir felicidade se deve ao fato de não adquirirmos prazer por nada simples. Isso, porém, não significa que somos incapazes de ficarmos felizes. A ausência de prazer imediato leva a criação de grandes planos, voltados, indiretamente ou não, ao alcance da felicidade. Os grandes planos, quando cumpridos, conseguem alcançar picos deste sentimento, dos quais somos relativamente sensíveis. Estes picos, porém, são passageiros, e rápidos, e deixam um gosto amargo na boca, e um vazio ainda maior do que o que existia antes. Concluindo, felicidade é uma busca contínua, porém um taboo doloroso em nossas vidas.
- Ter poucos/nenhum amigo: com o passar dos anos, a nossa incapacidade de sentir prazer nos leva a uma triste dúvida – será que o meu desinteresse pelo mundo está incomodando aqueles ao meu redor? Independentemente da resposta, a simples semente, dúvida, de estar incomodando pessoas inocentes a nossa condição faz com que gradualmente nos afastemos dos outros. O resultado disso é que com o passar do tempo ganhamos poucos amigos, e perdemos muitos deles. Além de tudo, garanto que nenhum dos que restam são exatamente normais. Mesmo dentro deste pequeno grupo, em geral nos aproximamos deles apenas a nível social, e raramente estamos presentes nos momentos bons, sejam de alegria ou de felicidade. Afinal, não é certo estragar as conquistas daqueles que amamos, certo?
- Possuir uma máscara social definitiva³: apesar de não termos muitos amigos e, de forma geral, termos dificuldade em interagir intimamente com os outros, todos nos amam. Isso porque somos ótimos atores, na pele de personagens apáticos fáceis de serem interpretados, e não costumamos nos prender aos julgamentos e preconceitos comuns que geralmente separam os desconhecidos. Prova disso, doutora, é que sou um ótimo clínico, bastante empático, garanto.
- Sentir muito tédio: pessoas vazias, vidas vazias, dias vazios. Item autoexplicativo por si só – porém importantíssimo!
- Viver baseado em objetivos banais ou impossíveis: de certa forma, podemos dizer que isso seja um resultado de tudo o que vimos até então. Afinal, somos pessoas assombradas pelo tédio, e incapazes de sentir qualquer prazer ou alegria em nada do que fizermos. É natural que, em algum momento, essa apatia tome forma de dor, e comece a nos incomodar. Por sorte, somos ótimos em uma arte há muito conhecida - mentir para nós mesmos. A forma mais eficiente para isso é nos convencermos de que precisamos de algo, de que precisamos realizar alguma coisa. Pelo tempo que durar, estas pequenas tarefas, objetivos, tomam a forma de uma aquarela de diferentes sentimentos falsos, que irradiam os nossos dias como a luz do Sol após uma longa tempestade. Quanto maior o objetivo, por mais tempo ficaremos entretidos. Por outro lado, quanto maior a tarefa, maior o vazio que fica quando ela é finalmente finalizada. O mais interessante disso tudo é que, mesmo sabendo que estamos nos enganando, continuamos com a farsa, e a sentir prazer em nossas falsas conquistas.
- Ser um amante platônico crônico: admito que este é um item mais pessoal do que uma constatação, e que, de certa forma, ele cabe dentro do item anterior. Sabemos hoje, ou acreditamos que sabemos, que a paixão está ligada com sistemas de recompensas dentro de nosso encéfalo. Se apaixonar, assim como cumprir alguma tarefa especial, ou receber um elogio merecido, liberam tanto na circulação quanto nos espaços sinápticos doses cavalares de serotonina, epinefrina e, principalmente, opioides endógenos. Isso tudo, somado a produção central de dopamina, leva a um prazer interessante, alvo de muitos estudos desde a origem da medicina moderna. Ludibriados por essa ideia tão linda e simples de prazer, mas incapazes de machucarmos os outros – nós somos insuportáveis, acreditem – nos vemos presos em relações unilaterais que mais doem do que nos dão prazer, porém que no fundo representam alguma coisa.
- Não possuir vontade de viver4: este último item conclui de forma incrível tudo que foi dito até então, e é, com certeza, o nosso maior dilema. Somos seres sem sentimentos, felicidade, amigos, objetivos ou amores verdadeiros. Parando para pensar, é impressionante como continuamos acordando dispostos todas as manhãs, sempre encarando com excelência esse mundo, para nós, vazio de sentido. Felizmente, em geral somos incapazes de nos sentir tocados por nossos sutis, e breves, pensamentos suicidas. Indiferentes, criamos e recriamos novos amores e objetivos, e continuamos arrastando as nossas vidas indefinidamente.
Bom, creio que isso responda, de certa forma, a sua pergunta, doutora. Espero que não se zangue pelo longo texto. Também espero que se divirta tentando me entender no futuro – se aceitar me tratar, prometo que serei um paciente regular.
1: Diz a lenda que existe uma diferença entre emoções e sentimentos. Desconheço-a, porém.
2: Admito que somos infelizes. Não somos tristes, porém.
3: Costumo brincar que uma vez por mês essa máscara quebra. Por um breve momento, porém.
4: Não somos suicidas, porém”.
Todos que entraram em contato com aquela resposta ficaram boquiabertos. Aquela complexa análise feita por Rafael sobre o próprio estado desafiava de frente toda a compreensão da psiquiatria contemporânea, e negava totalmente o papel desta. Afinal, nenhum humano poderia ter uma noção tão grande de si mesmo: aquele nível de autoconhecimento não deveria existir.
Por mais que isso parecesse uma opinião precipitada, tirada de apenas uma simples resposta a uma pergunta aleatória, ninguém ali tinha dúvidas quanto a veracidade daquela análise. Confiavam no julgamento de Débora, uma das psiquiatras mais renomadas e influente de todo mundo, e sabiam que, se ela realmente havia desistido dele, já havia sido finalizado o diagnóstico de síndrome atípica, impossível de ser reconhecida, ou tratada.
Débora desistiu do trabalho poucos meses após o incidente, sob protestos de centenas de pacientes e colegas. Rafael, algo desapontado, nunca mais voltou ao divã.
- Gabriel Ract -
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