Após a longa discussão travada com Marcos, fui orientada a seguir um de seus subordinados até uma sala específica, onde deveria aguardar a chegada da noite, assim como a eventual resposta sobre o nosso passeio noturno. Segundo este, eu não possuía qualquer tipo de permissão dentro do prédio, principalmente para perambular como desejasse, porém receberia um quarto provisório, com computador, cama e refeições em horários específicos. Se não fosse pelo computador e a certeza de que naquela noite poderia ter a experiência mais fantástica – ou frustrante – da minha vida, teria exigido os meus direitos com unhas e dentes.
Perdida em minhas anotações e devaneios, a tarde passou sem qualquer tipo de empecilho. Fui chamada pessoalmente por Marcos assim que a noite chegara, acompanhando-o até uma das saídas internas da guilda, em direção ao deserto onde as serpentes ficavam enclausuradas. Mesmo com a grossa blusa que me foi entregue, senti os ossos congelarem já na primeira brisa que alcançou o meu rosto.
Embarcamos em quatro pessoas dentro de um jipe militar. Marcos, que dividia comigo o banco de trás, tagarelava sobre os perigos e as belezas noturnas do Saara, enquanto surfávamos sobre dunas tortuosas e por entre sólidas ventanias, carregadas de areia. Não demorou muito para que, em meio ao lento progredir do meu desinteresse, identificasse um grande oásis, perdido quase que ao acaso. Há uma distância considerável deste, um amontoado característico de areia não passou despercebido por meus olhos: uma das serpentes se escondia a poucos metros de onde estávamos.
- Vejo que tem bons instintos – comentou o representante, ainda mais animado do que de costume. – Como você já tinha apontado, as características de anfíbio das serpentes exigem que elas fiquem em contato com a água por um período de tempo. Durante a noite, como elas cavam fundo antes de hibernar, parte dos seus corpos permanece em contato direto com os lençóis d’água, imediatamente próximos aos oásis, sendo tanto hidratados quanto aquecidos pelo calor acumulado durante o dia.
- Isso é fantástico. São mais inteligentes do que aparentam.
- Não, doutora. Isso não é inteligência: trata-se de um comportamento puramente instintivo. Imagino que entenda muito bem deste assunto.
Eu não apenas entendia sobre o assunto, era uma verdadeira perita. Prova disso é que não raro me deparava com as mais bizarras situações sempre que teimava em ir contra o meu aguçado sexto sentido, exatamente como estava fazendo naquele momento: desde a demonstração do meio-dia, algo em minha mente não parava de me alertar sobre a perigosa situação em que estava me metendo ao insistir naquela linha de investigação suicida.
O motorista reduziu a velocidade quando atravessamos a última porção de dunas, parando bem próximo ao oásis. Marcos, mais sério do que até então, informou mais uma vez sobre os riscos daquilo que estávamos prestes a fazer. Mesmo que a serpente estivesse adormecida, era de total importância que nos movimentássemos com o máximo de cautela possível, e não fizéssemos nada que pudesse comprometer a nossa segurança. Virou-se, então, para mim, oferecendo um rádio comunicador, precaução mínima para o caso de qualquer fatalidade. Depois pediu para que eu saísse do jipe, com cuidado. Ao fazê-lo, ouvi com certo desespero o característico clique de portas sendo trancadas.
- O que pensa que está fazendo? – questionei, com um tom claramente ácido.
- Garantindo que não saia daqui com qualquer tipo de ideia deturpada de artigo em mente.
- Nessa altura do campeonato você quer garantir isso? Sério?
Ele nem mesmo cogitou responder a minha irônica indagação. Permaneceu com os olhos fixos sobre mim, sem qualquer traço de simpatia no rosto. Pela primeira vez desde que o conhecera, nada nele me incomodava.
- Tudo bem, tudo bem. Diga-me o que exatamente querem de mim. Não estou em situação para não os ouvir.
- É simples, doutora. Além de obstinada, você é inteligente, e dona de um sexto sentido invejável. Foi uma surpresa para nós quando você não apenas nos localizou, mas também enviou aquele trecho de reportagem, questionando sobre o incentivo que recebemos dos países saarianos: nos últimos anos os governos também vêm questionando a relevância dos nossos serviços.
- Engraçado você comentar sobre isso. Eu pretendia sanar essa dúvida em algum momento. Adoraria saber a posição de vocês sobre o assunto.
- Pois bem. Julgamos clara a relevância dos nossos serviços, o problema é que não da mesma forma como antes. Por menor que seja o transporte em terra nos desertos, as serpentes continuam a ser criaturas perigosas, capazes de dizimar caravanas e cidades sem qualquer esforço. Porém ficou claro com o passar dos anos que a mais importante função desta guilda não é a de proteger os humanos, mas sim a de preservar as próprias serpentes, tão poderosas, mas tão frágeis frente ao poder e mentalidade que o homem de hoje possui. Claro que não podemos anunciar abertamente algo assim: acha que algum governo continuaria a nos apoiar financeiramente, em sigilo, sabendo que a nossa causa agora é filantrópica?
Fui forçada a negar com a cabeça, veemente.
- É claro que não. Se existe uma certeza que carrego comigo, é a de que nenhum dinheiro público é doado por puro altruísmo. Mesmo assim, não entendo o que querem de mim com toda essa história. Ainda mais me ameaçando.
- Não queremos muito, apenas aquilo que você se mostrou capaz de nos proporcionar. Desejamos que escreva sobre nós. Que revele ao mundo a verdade sobre a existência das serpentes de areia. E que faça com que as pessoas fiquem do nosso lado, nos auxiliando a cuidar destes seres maravilhosos! Uma missão fácil para uma escritora do seu calibre.
Fosse aquela uma situação menos ridícula, eu certamente concordaria com o Marcos, com um sorriso dissimulado, tentando resolver aquela encruzilhada com a lábia convincente e bruta que o universo, infelizmente, permitiu que tivesse. Porém estava de punhos cerrados, saturada demais para impedir que explodisse.
- Marcos, antes de dar qualquer resposta, preciso tirar uma dúvida contigo: vocês querem a verdade sobre o assunto ou querem apenas que alguém compre a luta sua luta? Adianto de agora que essas duas coisas são bem diferentes, e que eu não pretendo passar a mão na cabeça de ninguém, independente do quão nobres sejam os motivos. Muito menos por meio das minhas histórias!
- Se é realmente assim que pensa, doutora, sinto muito, mas você não nos deixa escolha.
Bateu, então, nos ombros do motorista, que ligou o jipe sem perder tempo. Em uma mistura de desespero e terror, tentei me agarrar à porta mais próxima, porém fui empurrada pelo terceiro homem. Não consegui resistir ao golpe, e acabei rolando até ser amortecida pela grama do oásis.
Levantei-me lentamente. Acompanhei com o olhar o veículo retornando para o prédio da guilda, de volta a segurança. Enquanto isso, permaneci onde estava, sozinha, tremendo de frio e de raiva, acompanhada apenas por uma criatura que poderia me matar sem qualquer dificuldade. Pensei em gritar, e lançar toda a minha frustração aos céus, mas logo desisti. Além da imprudência que seria acordar a serpente adormecida, não era a base de gritos que as coisas funcionavam. Fora isso, como dito anteriormente, uma parte importante do meu ser já esperava por uma reviravolta – nada daquilo era realmente inesperado.
Suspirei fundo, caçoando de mim mesma. Considerei as poucas opções que tinha, e conclui que certamente arranjaria um parceiro para a próxima aventura: a idade e a arrogância estavam começando a afetar a minha capacidade de negociar a minha própria segurança. Perdida em devaneios irrelevantes, meus olhos finalmente pousaram sobre o ser parcialmente escondido próximo a mim. Só então percebi que, mesmo sozinha, mesmo sem a esperança de viver mais um dia, precisava ir até o final com aquela história.
Lembrando das palavras de Marcos, me aproximei a passos lentos e cuidadosos do animal. Quando estava a poucos metros da montanha amorfa de areia, senti uma inesperada lufada de ar quente, impregnada com o cheiro pútrido de tripas de camelo em digestão, me atingir em cheio: de todos os pontos em que poderia ter me aproximado, escolhi justamente o focinho. Engolindo a coluna de vômito que subira até a minha boca, e controlando uma súbita onda de pânico que tomou posse de meu ser, continuei a caminhar com calma.
Perto o suficiente da serpente, estiquei uma das mãos com cuidado, tocando-a maternalmente. Retirada a pouca areia entre a minha pele e as escamas do animal, a sensação de tocá-lo foi simplesmente incrível. Por mais frio que estivesse, e por mais grossas que aquelas placas de queratina pudessem ser, sentir um ser fantástico como aquele sugando o calor de minha mão para economizar qualquer porcentagem de energia que fosse, era uma sensação indescritível. Todas as dúvidas se dissipavam enquanto eu deslizava a mão suavemente pelo corpo do réptil, acompanhando o ritmo de sua respiração lenta e profunda. Aquilo tudo era real demais para se tratar de uma farsa bem elaborada.
Naquele momento, acariciando as costas daquela criatura magnífica, me peguei questionando o que realmente viera fazer ali. Eu estava desesperada por uma boa história. Louca por algo que faria as pessoas relembrarem quem era Natália Costa, autointitulada escritora investigativa internacional. Desejava esfregar, com satisfação, mais um sucesso no rosto da humanidade. Por um período considerável de tempo, havia me esquecido do que era importante naquilo que fazia com tanto amor: apresentar às pessoas as verdades que o mundo se recusava a contar. Por mais doloroso que fosse admitir, a minha raiva e dor, orgulho e ego, tinham um papel pequeno, quase insignificante, perante todo aquele processo. Deixaria anotado quando reencontrasse o meu caderno: o mundo tem o dever de saber sobre a existência dessas serpentes, porém da forma certa.
Perdi mais alguns minutos sentindo a pulsação da criatura sob a minha pele, quase um detalhe sutil abafado por tantas escamas. Só depois decidi voltar, satisfeita, ao oásis, onde liguei o comunicador.
- Alguém na escuta?
- Doutora, mas que surpresa! Fico feliz que tenha entrado em contato – anunciou uma voz conhecida, novamente envolta por sua personalidade falsa e doce. – Mudou de ideia sobre o que discutimos?
- Não, não mudei. Longe disso, Marcos. Uma escritora do meu nível deve sempre se manter fiel às suas convicções. E para mim a verdade continua sendo uma entidade metafísica, soberana a qualquer outro fator que exista – por mais que a fama tenha o seu devido apelo.
- Perdoe a minha ignorância, mas não estou entendendo aonde quer chegar com isso. Entrou em contato conosco apenas para reforçar que não seguirá as nossas orientações?
- Marcos, insisto que, no futuro, use a sua substância cinzenta para algo além de decorar dados biológicos e mapas – rebati, sem muita paciência. – Eu estou disposta a apresentar a verdade ao mundo, e esta consiste no fato de que as serpentes de areia não se tratam de pura mitologia, e que são perigosas demais para serem simplesmente ignoradas. Também consiste no fato de eu ter entrado em contato com uma organização que se diz capaz de acolher tais seres, e que fui recebida em uma de suas sedes para conhecer a verdadeira história por trás desta antiga lenda africana. A minha conclusão, em cima de tudo que presenciei, será a de que vocês vêm realizando um excelente trabalho, e que possuem uma estrutura adequada para acomodar confortavelmente essas criaturas fantásticas.
Um incomodo silêncio tomou conta do rádio que tinha em mãos. Marcos retornou apenas após vários minutos, com um tom de voz tão solene e sério quanto o que usara ao me ameaçar.
- Olha, apenas para deixar as coisas claras, podemos ter certeza de que não vai comentar nada sobre esse último incidente, certo?
- Sobre qual incidente, exatamente, você esta falando? Não me recordo de nenhum dissabor entre nós.
Novamente, uma longa pausa. Dessa vez, não tão incômoda,
- Acha que com isso conseguiremos o que desejamos?
- Bom, vocês certamente irão esbarrar em alguns pormenores burocráticos, e na opinião de diversas ONGs de defesa aos animais, mas não menti em momento algum sobre aquilo que irei publicar. Se o que eu vi aqui se repetir nas outras unidades, vocês têm capacidade mais do que o suficiente para superar seja lá o que acontecer, e de manter essa guilda funcionando.
Nenhuma palavra foi dita depois disso. Em poucos minutos um novo jipe foi enviado ao meu resgate, carregado com inúmeras desculpas que eu, educadamente, ignorei. Naquela mesma noite retornei ao aeroporto, acompanhada por apenas meia dúzia de pertences, e meu fiel bloco de anotações, agora recheado de preciosos rascunhos de uma reportagem que viria a público após uma tranquila noite de sono em meu apartamento. Embora nada daquilo estivesse unicamente em minhas mãos, era inegável que o destino daquelas criaturas dependia de como as pessoas reagiriam a história que estava prestes a descrever. Para a sorte de Marcos, e da organização que representava, eu era muito boa no que fazia: permanecendo ou não sob o cuidado deles, as serpentes de areia certamente conquistariam o seu devido lugar no mundo.
- Gabriel Ract -
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